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Coluna | Periscópio
Wender Reis
wendernew@hotmail.com
Pedagogo e Orientador Social, curioso observador de tudo que causa espanto no mundo.
 
Christie
08/11/2016
 

Christie tem acessos de raiva sempre que me recuso a ceder aos seus pedidos. Nesses momentos é inútil tentar conversar de forma racional. Nenhuma ameaça ou tentativa de punição detêm sua fúria com os colegas, comigo e com o mundo. Ela diz fazer somente o que quer, que ninguém lhe manda, que não é obrigada a obedecer, que respeita quem quiser e quando quiser, que não se submeterá a imposição de quem quer que seja. Christie reivindica o direito de não seguir o que proponho ao grupo. Não quer ser tratada como os demais. É diferente, dona de si. Ela não cabe ali, não quer caber como quero que caiba. Ela é o meu maior desafio. Serenidade não funciona, pulso firme menos ainda. Em resposta a qualquer gesto meu, Christie se rebela.

13 anos de idade, mora com a mãe, uma irmã menor e um irmão recém iniciado na maioridade. O pai é distante e o relacionamento com o homem que junto de sua genitora lhe trouxe ao mundo é bastante conturbado. Aparenta ter ódio da maior parte dos homens adultos com os quais tem o mínimo contato. Eu sou um homem desses. Depois da uma hora e meia que passo com ela e seus colegas uma vez por semana fico devastado. Por que não consigo atingir Christie como acontece do contrário? Por que nem com as mil acrobacias didático-psicológicas consigo desmontá-la de sua égide de amazona sem lei? Christie tem uma visão equivocada do provérbio que diz que a melhor defesa é o ataque. Ela agride primeiro para contrarreagir com mais ferocidade as reações.

Negra, de um biotipo que não é nem a sombra caricata do nosso padrão de beleza estilo bonequinha, Christie tem gestos truculentos, nada dóceis, por ser mais forte que a maioria é uma tirana com os seus. Parece desconhecer o porquê tem tanta raiva. Seu único lugar de pertencimento é a relação com uma mãe fragilizada por uma vida atentada pelo abandono e pelo álcool. No mais, diz pertencer a rua, a rua não rejeita ninguém. A rua exclui acolhendo. Por mais de uma vez derramei lágrimas amargas por imaginar um futuro sem alegrias para Christie. Como explicar-lhe que mesmo sendo negro como ela, somos de fato iguais? Eu, negro estudado, absorvido por uma cultura branca que na maior parte das vezes me faço porta voz, como inspirá-la a valorizar o que eu valorizo? Como provar-lhe que assim é melhor? Que sou mais feliz que ela? Não posso garantir isso. Preconceito: os olhos de Christie já viram, seu corpo sentiu e sente, e ela re-age sem o menor autocontrole. Cada atitude sua reverbera nas frágeis amarras que unem a todos nós, negras e negros, que já nascemos perdendo. Christie não me reconhece como seu igual, não me reconhece como um espelho, tenta me aniquilar durante todo o tempo que estamos juntos. A mim, sobra a frustração de não alcançar quem eu penso mais precisar de mim.

Christie fora suspensa, seu anarquismo tirânico confronta o estado de ordem dos microssistemas de relações humanas. Talvez retorne à rua. Talvez retorne disposta a se conhecer melhor e entender a face do inimigo e suas armas para combatê-lo.

 
 
 
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