Eu sou um homem. Sei disso desde que nasci. Ao longo vida percebi que esse título é uma eterna batalha por afirmação. Minha referência masculina mais próxima quando criança foi o meu irmão, três anos mais velho, um exemplar de colecionador de uma sociedade misógina e violenta. Sobreviver junto ao meu irmão sempre foi um desafio, não tinha a coragem e a força necessárias para bater de frente com outros garotos, então parte da infância fui uma chacota. Certa feita, meu irmão, depois que fugi de uma briga, que ele mesmo incentivou, abriu a porta de casa para meu oponente, que me encontrou chorando embaixo da cama. Fui uma piada por meses.
Afirmar que não temos emoções, afirmar que somos bons nos esportes, afirmar que bebemos muito, afirmar que trabalhamos incansavelmente, tudo isso é uma pressão interminável para que nos conformemos a uma prescrição rasa de masculinidade. Gostaria muito de me autoproclamar liberto, mas a verdade é que não, por isso mesmo estou aqui. Já fui alvo e pratiquei incontáveis violências, das pequenas as grandes, contra outros homens e, muito infelizmente, também contra mulheres.
Como professor, sempre que trato dos efeitos e prejuízos que uma sociedade patriarcal causa a homens e mulheres, é comum que um ou outro aluno me tache, de uma maneira homofóbica, como gay. Esse tipo de comportamento é só mais um reflexo, pois o patriarcado também prejudica as chances de que nós homens tenhamos relacionamentos significativos e saudáveis uns com outros. Mas acontece que não dá para continuar fingindo que não é com a gente, não dá para rejeitar a reflexão sobre o nosso papel.
No dia 18 de julho de 2024 o Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Os números são estarrecedores, especialmente, os que tratam sobre as principais vítimas de uma sociedade patriarcal: as mulheres. Em 2023, o registro de violência doméstica teve aumento de 9,8% em comparação com 2022. O reporte de ameaças através do 190, da Polícia Militar, cresceu 16,5%. As mulheres sofreram 9,2% mais tentativas de homicídio em 2023 do que em 2022. As tentativas de feminicídio aparecem 7,1% mais altas em 2023 do que no ano anterior. O perfil das vítimas de feminicídios indica que 63,6% são negras; 71,1% têm idade entre 18 e 44 anos; 64,3% das vítimas foram mortas na PRÓPRIA RESIDÊNCIA.
DE TODOS OS ASSASSINATOS REGISTRADOS, 90% DELES FORAM COMETIDOS POR UM HOMEM.
“HOMEM QUE MATA, NOSSO MACHISMO SELVAGEM, Ô Ô Ô...”
Homens que têm algum tipo de relacionamento ou proximidade com a vítima. 63% são parceiros íntimos; 21,2% são ex-parceiros; 8,7% são familiares. Levando em conta essa proximidade com o agressor e possível assassino, em 2023, houve um aumento de 26,7% no número de pedidos de medidas protetivas em comparação com 2022.
Dados da ONU apontam que o Brasil lidera o ranking mundial de homicídios em números absolutos. Do total de 458 mil homicídios em todo mundo registrados em 2022, 10,4% deles ocorreram no Brasil. Vale lembrar que somos apenas 3% da população mundial. Além disso, estudo do Instituto Sou da Paz indica que, no país, apenas um em cada três homicídios é solucionado.
Entenda, homem, toda sociedade tem uma ordem de gênero, um arranjo de relações políticas, econômicas e sociais de poder que refletem e reforçam ideias sobre diferenças e hierarquias de gênero. Masculinidades patriarcais são aquelas que sustentam ideias e práticas que enfatizam a superioridade masculina sobre a feminilidade e a autoridade e o poder dos homens sobre as mulheres. Mas essas ideias e práticas de masculinidades patriarcais matam mulheres. Eles são expressos individualmente (em atitudes e comportamentos), institucionalmente (em políticas e práticas) e ideologicamente (em normas sociais e narrativas culturais). Precisamos mudar isso.