Chovia. Chovia e chovia...
A cidade, em estado de alerta, parecia esvaziada de seus mendigos, meliantes e pessoas em situação de rua que, sem nenhum incômodo e sem nenhuma perspectiva de um dia melhor em suas vidas, ocupavam os logradouros públicos onde precariamente se abrigavam das intempéries, das mazelas humanas e das agressões urbanas de uma monstruosa metrópole.
À medida em que avançava na leitura das páginas da espetacular escrita do renomado autor Émile Zola (na obra intitulada L'Œuvre), sentia-me imerso naquele ambiente de submundo parisiense, no conteúdo do livro, quando jovens artistas sonhavam em estar presentes com suas obras no Salão de Paris que renegava, sistematicamente, toda e qualquer manifestação daqueles artistas "desajustados"que mais tarde viriam a estar imortalizados no "impressionismo" ao terem suas criações rompido barreiras e sugerido uma visão diferenciada da percepção de uma criatividade genuína através de formas e de fórmulas inovadoras com o desempenho de suas pinceladas com emoção e luz, retratando paisagens e situações registradas por um novo olhar inovador.
Continuava chovendo e chovendo, sai correndo para adentrar o meu mundo no refúgio da leitura e da busca do frear o tempo que me escapa diariamente, minuto por minuto, no desfilar dos segundos e se apodera, de forma abrupta e injusta, dos elãs juvenis e dos sonhos que estariam concretizados no porvir.
O por vir estando limitado pelo galope do tempo que acresce mais anos vividos e menos tempo a desfrutar da efêmera passagem pelo Globo Terrestre.
A chuva se impunha. Umedecia meu cérebro. Revitalizava minha alma e me fornecia a disposição de emoções e sentimentos engavetados no âmago de minha memória.
Recuperava lembranças e sensações longínquas da tenra infância na Fazenda Santa Marina quando, no breu da noite, chegava a trovoada e a sinfonia do som causado pelas gotas que caiam sobre telhas de barro que abrigavam a singela casa onde vivíamos.
Me encontrei percorrendo as ruas da antiga Capital do Brasil, Salvador, onde mangas de chuva, durante o dia, me levavam a buscar o abrigo passageiro sob frondosas arvores, dentro de suntuosas igrejas barrocas ou no interior de residências abandonadas da outrora belíssima cidade com o semblante luso-brasileiro resultante de sua imponente trajetória histórica.
Ouvia as trovoadas, sentia-me só; deliciosamente solitário e impregnado da sensação de liberdade profunda naqueles momentos de reclusão pois chovia, chovia sem parar.
Gostaria de estar sensível, gostaria de derramar lágrimas abundantes sob a chuva, desejaria emocionar-me pela enxurrada dos anos passados, das ilusões perdidas, dos sonhos desfeitos, dos erros cometidos e dos acertos involuntários na fluidez da correnteza que levaria ao desembocar de minha vida.
"Deixa-me, deixa-me, fonte , dizia a flor a chorar;
Eu fui nascida no monte...
Não me leves para o mar" (Vicente de Carvalho)
Deslizo então na liquidez, no fluído dos anos passados e ouço minha mãe cantar a música que nos levaria a amar as águas, a chuva, o ruído sonoro das gotas sobre as telhas de barro, o grito severo do raio poderoso - de vida curta - anunciando o temporal, a tempestade e a chuva das correntes da vida.
Chovia sem parar...