Decisão equivocada da justiça do trabalho viola a LGPD e fere direito fundamental da trabalhadora
Uma Seção da Justiça do Trabalho de Santa Catarina (TRT-12) proferiu, em 17/02/2022, uma decisão em que deferiu o pedido da empresa de utilização de dados de geolocalização do telefone celular da trabalhadora, para demonstrar serem indevidas as horas extras que esta alega ter trabalhado e não terem sido registradas (Mandado de Segurança nº 0000955-41.2021.5.12.0000).
Nos termos da decisão, a prova digital deverá conter dados somente dos dias úteis de um mês por ano, totalizando 5 meses do período trabalhado. A trabalhadora deverá indicar os meses a serem pesquisados e, os dados coletados, colocados sob sigilo, com acesso apenas às partes envolvidas no processo. A prova testemunhal será colhida após a prova digital.
A decisão fundamenta que a privacidade da trabalhadora assim estará preservada e que a Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD (Lei nº 13.709/2018) autorizou o tratamento de dados pessoais para o exercício regular de direitos em processo judicial, acrescentando não haver hierarquia entre os tipos de prova, cabendo ao juiz determinar as que entender necessárias ao julgamento da causa. Afirma ainda que a prova digital é pertinente e mais eficaz que a prova testemunhal na busca da verdade real.
Ao contrário do que consta da decisão judicial, a LGPD não regula o tratamento de dados pelo Poder Público apenas no âmbito administrativo, deixando de abarcar a função jurisdicional.
A LGPD é uma lei de concretização do direito fundamental à proteção de dados pessoais e que portanto condiciona o exercício da função jurisdicional, cuja missão inclui a proteção e a realização dos direitos fundamentais. Logo, os juízes e tribunais devem obrigatória observância às regras da LGPD nas suas decisões.
Dentre as hipóteses em que a LGPD autoriza a realização de tratamento de dados consta “o exercício regular de direito em processo judicial”. Contudo, o tratamento de dados deve ainda observar os outros comandos legais, notadamente os princípios da finalidade e necessidade.
O princípio da necessidade impõe que determinado tratamento de dados somente é lícito se os dados forem efetivamente necessários para a finalidade legítima apontada - dentro de uma lógica de proporcionalidade - e ainda, se o fim almejado não puder ser alcançado de outro modo.
No processo mencionado, a finalidade pretendida poderia ser alcançada mediante as provas documental, testemunhal e o depoimento pessoal das partes. A quebra do sigilo dos dados de geolocalização da trabalhadora somente deveria surgir como opção se as outras provas, que não invadem a sua privacidade, mostrassem-se insuficientes para o julgamento da causa. A regra é a utilização do meio menos invasivo possível.
Consta equivocadamente da decisão judicial que se a prova digital fornece dados mais consistentes e confiáveis que a prova testemunhal, não há porque a sua produção ser relegada a um segundo momento processual, atendendo ao princípio da rápida duração do processo.
Medidas que visem à celeridade processual somente serão legitimamente adotadas na medida em que não desrespeitarem a privacidade e a proteção de dados, observando os comandos da LGPD. Havendo outro modo de se chegar ao mesmo resultado, a quebra do sigilo dos dados pessoais desatende aos princípios da necessidade e da proporcionalidade.
Contrariamente ao que consta da decisão judicial, o juiz não é livre para determinar a prova a ser produzida no processo, ele é balizado pelas normas constitucionais de direitos fundamentais e pelas leis deles concretizadoras, exigindo-se um esforço argumentativo acrescido na ponderação, para justificar a quebra do sigilo, quando isso for realmente necessário.
Registra-se que o Supremo Tribunal Federal já decidiu que da autonomia do direito fundamental à proteção de dados pessoais decorre que as exigências para a sua tutela ultrapassam em muito a mera colocação das informações sob sigilo.
E a decisão judicial cita jurisprudência do Supremo Tribunal Federal relativa a sigilo de dados, reconhecidamente pelo próprio STF como ultrapassada, anterior à reconfiguração do conteúdo do direito à privacidade e à autonomização do direito à proteção de dados pessoais.
Por fim, o Tribunal somente pode deferir um pedido de produção de prova se ele for legal, se o requerente a ele fizer jus. No caso, o uso de dados de geolocalização da trabalhadora como prova, embora tivesse como fundamento a hipótese, prevista na LGPD, do “exercício regular de direito em processo”, uma vez que, nas circunstâncias concretas do processo, não se cumpriam as exigências do princípio da necessidade, a empresa não fazia jus ao uso daquelas informações, de modo que o seu deferimento fere o direito fundamental da trabalhadora à proteção dos seus dados de geolocalização.